"Ele apareceu do nada. Eu juro que não vi". As duas orações acima e suas variantes são recorrentes quando o motorista tenta explicar como acertou o pedestre --ou o motoboy ou o ciclista. Mais do que uma desculpa esfarrapada, a frase pode revelar algumas verdades cognitivas mais profundas sobre a espécie humana.
Embora não o reconheçamos, nossa capacidade de atenção é bastante limitada. Um experimento seminal de 1999 conduzido pelos psicólogos Christopher Chabris e Daniel Simons traduz com muito bom humor o tamanho da encrenca. Eles fizeram um vídeo no qual seis pessoas (três vestindo camisetas brancas, e três, pretas) trocam passes com duas bolas de basquete. Participantes da pesquisa são instruídos a contar mentalmente os passes do pessoal de branco enquanto assistem ao vídeo. A uma dada altura, um sujeito fantasiado de gorila entra em cena, encara a câmara, bate no peito e se retira. Ele aparece na tela por 9 segundos.
Você o notaria? A esmagadora maioria das pessoas responde com um sonoro "sim". Como não perceber um gorila que fica em cena por quase 10 segundos? Mas não interessa muito o que imaginamos, o fato é que 50% das cobaias simplesmente não veem o símio, porque estão ocupadas contando. O experimento, que rendeu a seus autores o prêmio IgNobel de 2004, foi repetido com diferentes públicos em diferentes países com resultados sempre semelhantes. É claro que você, que agora conhece o truque, não vai mais cair, mas pode testar o desempenho de seus amigos e familiares no site www.theinvisiblegorilla.com . Lá há um link para o vídeo.
Está em operação aqui o que os psicólogos chamam de "cegueira por inatenção". Trata-se de um viés cerebral com importante impacto social, que se materializa justamente na forma de acidentes. No livro "The Invisible Gorilla", Chabris e Simons exploram os meandros dessa e de mais cinco ilusões cognitivas de alto custo para a humanidade. Elas envolvem, além da atenção, a memória, a confiança, o conhecimento, a causalidade e a potencialidade. É uma leitura ao mesmo tempo divertida e instrutiva. Como não dá para desenvolver todos esses pontos no espaço relativamente limitado de uma coluna, centremo-nos na questão da atenção e, em especial, a sua ligação com o trânsito.
O problema não é tanto não ver o gorila, mas acreditar erroneamente que seremos sempre capazes de fazê-lo. Nós imaginamos que podemos enxergar tudo o que aparece à nossa frente, quando na verdade só temos consciência de uma pequena porção das coisas que estão em nosso campo visual. Em geral, vemos aquilo que o cérebro já espera encontrar. A contrapartida é que basta uma distração mínima para deixar de observar o que não é esperado.
O efeito não se limita a macacos e pedestres. Como Chabris e Simons mostram, essa ilusão também faz com que, em simuladores, pilotos de jatos comerciais fiquem cegos para aviões que cruzam a pista taxiando quando eles vão aterrissar (incursões são um fenômeno relativamente raro, ainda que potencialmente fatal) e que radiologistas experimentados não vejam uma pinça esquecida no abdome do paciente (o médico, afinal, procurava por tumores, não por objetos perdidos).
Um mecanismo de retroalimentação reforça ainda mais o viés: só percebemos as limitações de nossa atenção nas poucas vezes em que algo dá errado; o número bem maior de ocasiões em que falhamos mas nada de extraordinário acontece nem sequer é registrado por nosso radar mental.
Com isso, não pestanejamos antes de superestimar nossa capacidade de atenção, o que frequentemente nos coloca em situações de perigo, como dirigir em velocidade superior à calculada pelos técnicos (isso mesmo, aquele número que nos parece ridiculamente pequeno que aparece nas placas) ou falando ao celular.
O telefone constitui um caso à parte. Há diversos estudos experimentais e epidemiológicos mostrando que o efeito do celular sobre a direção é comparável ao do álcool. Ambos diminuem nossa capacidade de prestar atenção e, com isso, reagir em tempo hábil ao imponderável.
Apesar de as gerações mais novas se gabarem de ser "multitarefa", isso também é uma ilusão. Embora as habilidades variem de pessoa para pessoa, quanto mais atividades simultâneas o cérebro humano realiza, pior ele sai em cada uma delas. No experimento do gorila, quando as cobaias precisam contar os passes dos brancos e dos pretos, a porcentagem dos que percebem a presença do animal cai para 20%.
Voltando aos celulares, se eles são assim tão perigosos, por que não experimentamos o mesmo grau de desatenção quando ouvimos o rádio ou conversamos com alguém dentro do veículo? E de fato há artigos que mostram que essas atividades não atrapalham muito a direção. De acordo com Chabris e Simons a principal diferença está na demanda social da conversação telefônica. Quando falamos com o passageiro, a exigência atencional para manter a sincronização do diálogo é bem menor. Não precisamos, por exemplo, nos preocupar em responder sempre imediatamente, porque quem está no carro acompanha o contexto da estrada e interpretará corretamente os silêncios e lacunas.
É claro que, na maioria das situações, nem o uso do telefone nem o consumo de um ou dois drinques (muito antes de comprometer a capacidade de andar em linha reta, o álcool já reduz os recursos atencionais) levam a acidentes, mas isso porque dirigir é uma atividade previsível e fartamente regulada. Mesmo que você faça besteira, os outros atores (motoristas, pedestres etc.) estarão se esforçando para não atingi-lo. Mas basta que surja uma perturbação um pouco maior para que o resultado seja catastrófico. Nós fomos projetados para nos locomover a velocidades da ordem de 5 km/h e sem carregar muito mais que o peso de nossos próprios corpos. Sob essas condições, levar alguns segundos a mais para reagir a um obstáculo não muda muito as coisas. O pior cenário é um esbarrão. Mas, quando andamos a 100 km/h e sobre estruturas de mais de uma tonelada, frações de décimo de segundo podem fazer a diferença entre a vida e a morte.
Evidentemente, não vamos conseguir extinguir os vieses e as ilusões inscritas nas profundezas de nosso cérebro, o que torna difícil a solução dos problemas que eles originam. De toda maneira, há medidas que podem ajudar. Conhecer nossas fraquezas cognitivas é um bom começo. Em algum grau ainda que pequeno, elas são permeáveis a análise racional e treinamento.
Também seria interessante colocar pedestres e ciclistas no mapa mental dos motoristas. Quanto menos estes forem um elemento-surpresa, maiores as chances de serem vistos pelos condutores. E, como mostrou um trabalho de Peter Jacobsen de 2000, é nas cidades onde há mais pedestres e ciclistas que eles estão mais seguros (considerados mortes e ferimentos por milhão de km caminhados ou pedalados). Esse estudo, é claro, se restringiu a cidades do Primeiro Mundo. Duvido, por exemplo, que seja mais seguro andar de moto aqui do que em Londres, apesar da abundância de motoboys nas capitais brasileiras.
Seja lá como for, é um bom sinal constatar que o paulistano, depois de um acidente trágico que teve ampla cobertura midiática, parece ter descoberto a existência do pedestre. Já era mesmo hora de fazê-lo. É a marcha civilizatória que o exige.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em Filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com às quintas-feiras.
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